Menos de 24 horas depois de o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, assinar o acordo de cessar-fogo entre Israel e o movimento islâmico palestino Hamas, em Sharm el-Sheikh (Egito), o plano de paz enfrentou os primeiros entraves nesta terça-feira (14/10). Ante a demora na entrega dos corpos de reféns israelenses mortos no cativeiro, o governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu anunciou que Israel não reabrirá a passagem de Rafah, na fronteira entre a Faixa de Gaza e o Egito, até a devolução de todos os 28 cadáveres. As autoridades do Estado judeu também restringirão a entrada de ajuda humanitária no enclave palestino. Na segunda-feira (13), quando a primeira fase do acordo passou a vigorar, quatro corpos foram devolvidos a Israel.
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Um comboio com mais quatro mortos saiu de Gaza, na madrugada desta ter quarta-feira (no horário israelense), e seguiu até o Instituto Nacional de Medicina Legal, em Tel Aviv, para o processo de identificação. Com isso, 20 mortos ainda têm que ser devolvidos pelo Hamas. A reabertura da passagem de Rafah estava prevista no plano de paz da Casa Branca. Por sua vez, o Hospital Nasser, na Cidade de Gaza, anunciou que Israel entregou os corpos de 45 "mártires" — palestinos mortos em prisões dentro do Estado judeu. Segundo as bases do acordo, Israel compromete-se a entregar 15 corpos de palestinos para cada refém morto em cativeiro.
Trump intensificou a pressão sobre o Hamas e ameaçou intervir para desarmar o movimento palestino. "Se eles não se desarmarem, nós os desarmaremos. E isso acontecerá rapidamente e, talvez, violentamente", declarou o republicano na Casa Branca. "Falei com o Hamas e lhes disse 'vão se desarmar', e eles disseram 'sim senhor, vamos nos desarmar'", disse Trump, ao esclarecer que repassou o recado ao Hamas "através da minha gente" — sem explicitar quem foram os responsáveis pelo papel de mensageiros.
Moradoras de Sderot, no sul de Israel, observam a destruição em Gaza (foto: Jalaa Marey/AFP)
Moradora de Nir Oz, o kibutz com maior número de mortos durante o massacre de 7 de outubro, Rita Lifshitz disse ser a favorável da paz e dos direitos humanos, mas fez uma ressalva ao Correio. "Os corpos devem ser devolvidos. Mais de 2 mil prisioneiros palestinos, que têm sangue nas mãos, foram libertados. O Hamas tinha que ter entregue 28 cadáveres de israelenses, mas repatriaram apenas oito. Eles têm que ser trazidos para Israel o quanto antes. Ate lá, nenhuma comida deveria entrar em Gaza", defendeu.
Com a retirada das Forças de Defesa de Israel (IDF) para além da linha amarela — que engloba as maiores cidades de Gaza —, o Hamas iniciou uma campanha de repressão para ocupar o território perdido durante os dois anos de guerra. Jornalistas da agência de notícias France-Presse observaram a presença de integrantes das forças de segurança do grupo, encapuzados, em mercados e estradas de várias localidades de Gaza.
Testemunhas reportaram intensos combates no bairro de Shujaiya, na Cidade de Gaza. Elas asseguraram que uma unidade afiliada ao Hamas combateu clãs e facções armadas, algumas delas supostamente apoiados por Israel. Sobre o incidente, as IDF informaram que vários suspeitos foram localizados cruzando a linha amarela e se aproximando das tropas israelenses, no norte de Gaza, em uma "clara violação do acordo". "Depois de várias tentativas de afastá-los, os suspeitos recusaram-se a obedecer, levando os soldados a abrirem fogo para dissipar a ameaça. Relatos de terroristas se infiltrando em uma posição das IDF são incorretos. As IDF pedem aos moradores de Gaza que sigam as instruções e mantenham distância das tropas", afirmou o Exército de Israel.
Uma fonte de segurança palestina confirmou à agência de notícias France-Presse que um contingente do Hamas — uma unidade recentemente criada que funcionaria como "Força de Dissuasão" — realizava "operações de campo para garantir a segurança e a estabilidade".
Lacunas
Especialista do Carnegie Middle East Center, em Beirute, Yezid Sayigh admitiu ao Correio que o plano de Trump tem fragilidades e lacunas. "É inevitável que Israel explorará toda a oportunidade para atrasar e complicar as coisas. Durante as negociações sobre o cessar-fogo, o Hamas enfatizou que levaria tempo para localizar todos os corpos de reféns israelenses, e que alguns deles estariam em áreas sob controle israelense. Isso era algo conhecido por todas as partes", explicou. "A conclusão é que, embora ambos os lados tenham a capacidade de sabotar o acordo, somente Israel tem o poder e a influência para garantir seu sucesso. Se quiser que o processo seja bem-sucedido, pode lidar facilmente com esses problemas."
Escavadeiras enviadas pela Prefeitura da Cidade de Gaza trabalham na remoção de escombros das principais ruas (foto: AFP)
Por sua vez, Habib C. Malik, professor de história aposentado da Universidade Libanesa Americana (em Beirute), considera urgente debater o completo desarmamento do Hamas e o começo da reconstrução em Gaza. "Resta saber com que rapidez e com que fluidez esses dois desafios serão enfrentados. Mas está claro que os Acordos de Abrão, para aprofundar e ampliar a paz regional entre Israel e seus vizinhos árabes, além de Estados islâmicos distantes, são agora uma perspectiva muito mais realista do que nunca", disse à reportagem.
Para o iraquiano-americano Alon Ben-Meir, professor de relações internacionais da Universidade de Nova York e especialista em Oriente Médio, a troca de reféns por prisioneiros é um passo "muito bom". "A questão é se Israel e os palestinos estarão preparados para construir algo em cima disso e avançar rumo a um processo de reconciliação e, eventualmente, um acordo parcial entre eles. Será uma tarefa muito longa e difícil", alertou ao Correio. O especialista lembrou que israelenses e palestinos concordaram em dar vários passos em direção à paz, mas não conseguiram cumpri-los. "A questão, agora, é se Trump continuará a pressionar ambas as partes para entrar em algum tipo de negociação parcial, bem como um processo de reconciliação que eventualmente levaria ao estabelecimento do Estado palestino de acordo com seu próprio plano. Isso ainda será visto", afirmou Ben-Meir.
Execuções públicas
Hamas executa supostos colaboradores de Israel, na Faixa de Gaza (foto: X/Reprodução)
Na manhã de segunda-feira, enquanto os 20 reféns israelenses eram libertados pelo Hamas, o movimento islâmico palestino realizava execuções em massa e públicas na Faixa de Gaza. Os assassinatos sumários seriam de supostos colaboradores do Hamas. A Autoridade Palestina (AP) condenou os "crimes hediondos" e "injustificáveis" e alertou que eles refletem a insistêncoa do Hamas em governar por meio da força e do terror. "A restauração da lei e das instituições legítimas do povo palestino em Gaza é o único meio de pôr fim ao estado de caos e reconstruir a confiança nacional", afirmou o comunicado da AP.
DEPOIMENTO
"Não é uma paz real"
"O plano de Donald Trump é apenas um acordo para pôr fim à guerra em Gaza e assegurar um cessar-fogo duradouro. Não pode ser descrito como uma paz real, porque não inclui o fim da ocupação militar israelense na Faixa de Gaza, na Cisjordânia e em Jerusalém. Ele não inclui permitir que os palestinos sejam livres da ocupação e do sistema de apartheid israelense. Também não lhes dá o direito de praticar a autodeterminação e nada diz sobre a criação de um Estado palestino soberano.
Mustafa Barghouti é médico, ativista e secretário-geral da Iniciativa Nacional Palestina. É considerado potencial sucessor do presidente palestino, Mahmud Abbas (foto: ABBAS MOMANI)
A paz não será alcançada com mais acordos de normalização entre países árabes e Israel. Experiências passadas mostraram que tais acordos, sem resolver o tema palestino, apenas criam condições negativas que levam a mais confronto, como vimos em 7 de outubro de 2023. O verdadeiro caminho para a paz no Oriente Médio começa com o reconhecimento do direito dos palestinos de serem livres da ocupação e do sistema discriminatório de apartheid israelense e a criação de um Estado palestino independente — que também garanta os direitos internacionalmente reconhecidos dos refugiados palestinos deslocados de sua terra natal em 1948 e em 1967 por Israel."
Mustafa Barghouti é médico, ativista e secretário-geral da Iniciativa Nacional Palestina. É considerado potencial sucessor do presidente palestino, Mahmud Abbas
Saiba Mais
Escavadeiras enviadas pela Prefeitura da Cidade de Gaza trabalham na remoção de escombros das principais ruas Foto: AFP
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Moradoras de Sderot, no sul de Israel, observam a destruição em Gaza Foto: Jalaa Marey/AFP
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Hamas executa supostos colaboradores de Israel, na Faixa de Gaza Foto: X/Reprodução
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Mustafa Barghouti é médico, ativista e secretário-geral da Iniciativa Nacional Palestina. É considerado potencial sucessor do presidente palestino, Mahmud Abbas Foto: ABBAS MOMANI
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Subeditor de Mundo
Jornalista formado pela Universidade Federal de Goiás (UFG) em 1997. Curioso por natureza, adora buscar histórias. Desde 2005, trabalha no Correio Braziliense, onde entrevistou laureados com o Nobel da Paz, embaixadores e ex-presidentes.